quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Coração Materno

Celestino era um homem simples, nascido e criado no campo. Seu pai morreu quando ele tinha cinco anos. Para suprir a falta que um pai faz, foi criado de forma rústica pela mãe. Filho único, cresceu um sujeito quieto e sonhador. Sua juventude inteira imaginou a amante perfeita, cada detalhe minucioso de seu corpo, olhos e cabelos.

Anos e anos se passaram até ele ver, pela primeira vez em sua vida, uma mulher que não fosse sua mãe. Gilda veio da cidade grande junto com os pais viver a vida simples e calma do campo. Logo no primeiro dia, a recém chegada família foi conhecer os novos vizinhos. Celestino ficou encantado com Gilda que sempre retribuia seus olhares com sorrisos amarelos.

A amizade entre os dois cresceu ao passar do tempo. Ficaram grandes amigos. Porém, Celestino não gostava nem um pouco quando o primo de Gilda vinha da cidade grande para visitá-la. Paulo era bonito, inteligente e tinha um carinho enorme pela prima. Ficavam o tempo todos aos beijos e abraços.
 

Em uma tarde de outono, Celestino e Gilda estavam sentados conversando debaixo de um pé de manga. Uma tempestade se aproximava. "Minha amada, o que quer de mim? Por você mato, roubo...embora, na maior parte do tempo, me deixe triste", disse Celestino de forma direta. "Quero provar o quanto te quero, desejo teu corpo, admiro sua exuberância e a sua existência. Me diga o que quer, por você não importa matar ou morrer". Gilda sorriu diante de toda inocência de Celestino e disse brincando: "Se é verdade sua paixão por mim, vá buscar o coração de sua mãe."

Celestino partiu correndo em direção da sua casa. A tempestade tinha chego e ele podia sentir as gotas de água batendo em seu rosto, como se fossem pedras de gelo. Como um raio na estrada sumiu. Gilda tentou alcançá-lo mas caiu no meio do caminho e ficou na estrada à chorar.

O dia escurecia mais cedo por causa da forte tempestade. Essa que não parava um segundo, tão forte quanto as batidas do coração de Celestino, prestes a realizar o desejo de sua amada. Ele abre a porta e encontra sua mãe, já uma senhora, sentada a rezar. Como se estivesse possuído por um demônio enlouquecido, rasga o peito da velhinha aos pés do altar. Um raio que caiu a quilômetros da casa iluminava a sala pela janela como se fosse a cena final de um filme de Hitchcock: ensaiada diversas vezes e finalmente acontecia de forma maestral.

Tirou do peito sangrando o coração de sua velha mãezinha e voltou a correr pela a estrada, gritando: "Sim! Agora tenho o amor dela!". Em disparada, devido a escuridão e a forte chuva, Celestino não viu um buraco e caiu, quebrando sua perna esquerda. Na queda, o pobre coração saltou de sua mão e rolou pela estrada no meio das pedras, barro e chuva.
Celestino gritou de dor, raiva e decepção. Olhou para sua perna notou uma fratura exposta. Tentou esquecer a dor e encontrar o coração. Tudo ao seu redor começava a escurecer mas com muito esforço, virou sua cabeça para o lado e o encontrou. Nesse instante, a chuva parou de forma abrupta e uma voz ecoou: "Meu filho, não fique magoado. Vem me buscar, aqui estou. Ainda sou seu."

Celestino morreu de olhos abertos, olhando para o coração de sua mãe. Gilda nunca mais foi vista e os pais delas resolveram voltar para a cidade grande. Todo sangue, o coração partido, o coração arrancado...tudo isso foi muito para as pobres pessoas daquele povoado. Até hoje contam a história para os curiosos mas, quando chega a noite, rezam as mesmas orações que a pobre mãezinha fazia para que seu filho encontrasse seu verdadeiro amor.


(Baseado em Coração Materno [1937] de Vicente Celestino)

Happy hour

Ele chegou às 5 da manhã e, ao entrar pela porta
da sala, gritou:
"Quero que todos vocês morram!". Pegou um 
machado no porão, quebrou todos os espelhos da 
casa, pintou todas rosas do jardim de preto, 
desenhou símbolos estranhos com sangue nas 
paredes e, depois, sentou-se para tomar o café 
da manhã que foi preparado como se nada tivesse 
acontecido. Era apenas mais um dia comum para 
ele na casa de alguém que esqueceu de trancar 
a porta antes de dormir.

domingo, 10 de julho de 2011

O culto

"Os anos se passaram como as páginas perdidas em minha memória de todos os livros que li ", pensava Nelson deitado em sua cama em um sábado à noite, olhando para o teto.

Depois que sua mãe morreu misteriosamente, há 2 anos atrás, se afundou nos livros. Tinha lido de Jack Kerouac até Aleister Crowley. Tudo aquilo não significava mais nada para ele. Toda aventura, toda rebeldia, toda bruxaria não fazia sentido nenhum trancado em um quarto. Nem trabalhava mais. Estava vivendo com o dinheiro que sua mãe juntou guardando todo mês alguns trocados na poupança. Sua casa era seu mundo. Comida enlatada e whisky era tudo o que precisava.

"Preciso fazer um drink". Nelson se levantou e foi para a cozinha pegar um copo de whisky com gelo, quando o telefone tocou. Antes de pegar o telefone, observou pela janela sua vizinha o observando fixamente. "Alô, quem fala?". A vizinha continuava a olhar. Ela parecia saber as frases que iriam sair daquele telefone. "Nelson, você está me escutando? Vamos para aquele pub em que você passou mal no ano novo? Você precisar sair dessa merda de quarto, dar umas risadas. Vamos lá!". Rodrigo era um bom amigo. Nunca desistiu de ligar para Nelson em tentativas frustadas de tirá-lo dali desde que sua mãe morreu. Talvez hoje fosse um bom dia para recomeçar. "Rodrigo, vamos sim. Estarei lá as 11".

Nelson entrou no banheiro para se arrumar e, antes que colocasse o primeiro pé no chuveiro, a campainha tocou. Ele colocou seu roupão e foi atender. "Boa noite Sr Nelson.". Sr McCoy era o síndico do prédio. Um inglês arrogante viciado em Gauloises e cerveja barata. "O Sr Cardoso reclamou do barulho que você anda fazendo de madrugada. É melhor parar com isso ou vou tomar providências". Como de costume, sr McCoy se virou sem dar uma chance de resposta para Nelson. "Eu não faço nada a não ser ler livros, não faço barulho algum", disse Nelson no vácuo do corredor.

11 da noite. Nelson chegou ao pub. Rodrigo o esperava na porta. "Nelson, não acredito que você veio!", disse Rodrigo enquanto abraçava Nelson. Dois velhos amigos de infância de Nelson estava juntos com Rodrigo. Nelson olhou para a mão de um deles e notou que ela estava completamente podre. Ele passou a mão sobre seus olhos e olhou novamente. Foi apenas sua imaginação. Talvez pelos meses de exílio em sua casa.

Depois de muita conversa e muita bebida Nelson se sentia cheio de tudo aquilo. Queria voltar para seus livros, mas achava chato ir embora naquele momento. "Pessoal, preciso ir ao banheiro", disse Nelson se levantando da mesa. "Espere!", disse Rodrigo. "Vamos tomar o drink especial da casa comigo, peguei um pra mim e um pra você". Nelson tomou o drink rapidamente e seguiu seu caminho para o banheiro.

Chegando ao banheiro, Nelson olhou para o espelho. Estava completamente suado. Não tinha notado isto até o momento. Ele olhou em seu rosto e percebeu que tinha um corte que sangrava sutilmente. Se aproximou do espelho para analisar o corte quando escutou um sussuro. Ele olhou para trás e apenas viu um mictório sujo e alguns cigarros apagados no chão. Ele escutou novamente o sussuro. Era um sussuro de dor. Um sussuro assustador. Ele olhou por debaixo da porta de um dos banheiros que estava com a porta fechada e notou que não tinha ninguém ali. Quando se levantou, viu um vulto atrás dele. Uma mulher de 2 metros de altura, com cabelos negros e longos, vestida completamente de branco. "Fuja", sussurou a mulher. Ele se assustou com aquela visão e saiu correndo. Ao abrir a porta do banheiro, trombou com Rodrigo que o assustou. "O que foi Nelson? Achei que estivesse passando mal aí dentro. Todos estão te esperando".

Quando Nelson saiu do banheiro notou algo estranho. O lugar estava com as luzes apagadas e repleto de velas vermelhas. Todas as mesas tinham sumido. Ele andou mais um pouco e notou que todas as pessoas estavam vestidas de preto e usando um capuz preto. Estavam em volta de uma mesa mas ele não podia ver o que estava ali no centro. Nelson deu um passo para trás numa tentativa de fuga quando esbarrou em alguém. Ele olhou para o rosto da pessoa e percebeu que era o Sr McCoy, vestido completamente de preto mas sem capuz. "Sr Nelson, o que você vai fazer em relação ao barulho? O que você está fazendo não é certo. As providências devem ser tomadas". Uma porta se abriu e Rodrigo apareceu com um capuz branco em suas mãos. Ele colocou na cabeça de Nelson que sentiu seu corpo completamente paralisado. Nelson se sentiu atordoado. Sentiu as luzes em sua volta ficarem cada vez mais fracas. Alguns segundos depois, apagou completamente.

Nelson acordou, ainda atordoado, e percebeu que estava deitado em uma mesa, completamente nu, rodeado de pessoas vestidas de negro. Eles faziam uma espécie de oração e um deles ficava movimentando uma bola de ferro que soltava uma fumaça em volta de Nelson. Nelson sentia seu corpo cada vez mais dormente. De repente, do meio de todos apareceu uma mulher negra completamente nua. Seus olhos eram verdes e brilhantes. Ela fazia uma dança estranha. Tinha uma faca afiada em sua mão. O cabo da faca era uma cobra em forma de oito comendo o seu próprio rabo. A mulher subiu em Nelson e dançou conforme a velocidade da reza que estavam fazendo, aumentando a velocidade cada vez mais. Ela se pôs de joelhos sobre Nelson, e ele escutou um sino tocar. Todos ficaram em silêncio. A mulher levantou a faca e a cravou no peito de Nelson que não conseguiu gritar de tão atordoado que estava.

Nelson acordou. Olhou para todos os lados. Estava em sua casa, foi tudo um sonho. Eram 3 da manhã. Ele escutou o telefone tocar e foi atendê-lo. A luz no apartamento da vizinha estava acessa e ela continuava a observá-lo. "Alô"- murmurou Nelson, ainda com sono. "Sr Nelson, aqui é o Sr McCoy. Você continua fazendo barulho. Achei que você iria mudar seu comportamento diante das providências tomadas. O caminho que você escolheu não tem mais volta. NÃO TEM MAIS VOLTA". Nelson olhou pela janela e viu que todas as luzes de todas as janelas estavam acessas, e todos os vizinhos o observavam vestindo um capuz preto. Ele escutou a mesma reza de seu sonho ecoar por todos os lados. Todos estavam cantando aquele hino. Ele não entendia uma palavra. Mas sabia o que era aquilo. Estavam louvando o diabo. Estavam evocando o diabo para cravar uma faca em seu peito mais uma vez.

"Não! Dessa vez não!". Nelson correu em direção a janela da sala e se atirou por ela. Ele se espatifou no terraço e sentia o sangue em sua garganta dificultando sua respiração. Tudo ao seu redor escurecia cada vez mais, mas ainda pode notar alguém se aproximando. Era o Sr McCoy. "Nelson, o que aconteceu? Você está bem?". "Eu não vou fazer mais barulho, me desculpe", respondeu Nelson com muita dificuldade. Por um instante, Nelson achou que tudo aquilo fosse coisa de sua cabeça, que os meses de isolamento tinham o feito enlouquecer completamente e aquele era o seu fim. Quando ele abriu os olhos, viu uma multidão de pessoas com capuz vestidas de negro atrás de Sr McCoy. Eles começaram a cantar novamente e a mulher negra saiu do meio deles dançando. O Sr McCoy vestiu um capuz negro e começou a dizer: "Senhores, o diabo, nosso pai eterno, esta prestes a voltar. A viúva negra veio do inferno para encerrar sua missão". O Sr McCoy se aproximou de Nelson e continuou com suas palavras. "Essa criatura imprestável foi apenas um meio para trazer nosso Senhor de volta. A viúva negra irá encerrar o culto, dar o último passo para a vinda dele." A mulher negra se aproximou dele. Ela estava diferente. Agora tinha uma pele turva e escamosa - parecida com a de um peixe, tinha espinhos em seus braços e unhas afiadas como faca. Seus olhos verdes brilhavam de forma hipnótica, deixando-o levemente sonolento. Subitamente, levantou um de seus braços e o cravou no peito de Nelson.

Antes de morrer, Nelson ainda pode escutar as palavras de Sr McCoy: "O diabo está nas entranhas de nossa rainha. O culto chegou ao fim. Vamos celebrar na casa do Sr Cardoso. O silêncio o incomodou demais ao longo destes anos. As providências foram tomadas. Nosso Senhor vai voltar!"

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Limite vermelho

John era um homem exemplar. Pai de família, trabalhava duro todos os dias das 9 às 6 para sustentá-la. Era reconhecido por seu trabalho, adorado por todos e sempre andava com um sorriso no rosto.

De uns meses pra cá, John se sentia um pouco confuso com o rumo que sua vida estava tomando. Queria passar mais tempo com os filhos, mas o excesso de trabalho o deixava estressado e cansado. No começo, aliviava suas dores tomando alguma bebida no bar no caminho de casa. Sem ele perceber, isso virou rotina. Depois de um tempo, um vício.

Em uma quinta-feira, saindo de seu trabalho, John sentiu uma dor horrível na parte de trás de sua cabeça. Parecia que tinha um verme gigante sugando todas as energias que restavam em seu corpo cansado. Parou, como de costume, no bar no caminho de sua casa e pediu uma cerveja. Quando John foi tomá-la percebeu que o copo estava vazio. Ele não lembrava de ter tomado a bebida. Pediu outra. Quando o copo chegou em sua boca, percebeu novamente que o copo estava vazio. John ficou furioso e gritou para o garçom:
- Hei, o que aconteceu com minha cerveja??
O garçom, um japonês de pele oleosa e sorridente, simplesmente olhou para John com um olhar de reprovação e mexeu a cabeça ignorando-o.

John achou que o problema fosse com a cerveja e resolveu pedir um copo de vodca com gelo. Para sua surpresa, conseguiu sentir o prazer do líquido passeando por sua garganta. Quando terminou o copo, pediu outra para o garçom japonês.
- Outra? Cara, você já tomou 85 doses!

John não entendeu aquilo. Tinha tomado apenas uma dose. Quando foi responder o garçom, sentiu uma tontura que quase o levou para o chão. Sua visão ficou embaçada e tudo parecia branco com pontos vermelhos brilhante, como estrelas. Sentiu uma dor de barriga incontrolável que parecia uma faca rasgando seu intestino. John correu para o banheiro, abaixando as calças no meio do caminho. Quando chegou lá, nem deu tempo de sentar na privada. Começou a cagar na porta e ao sentar na privada, ficou impressionado com a quantidade de merda que saia.
- Não comi tanto no almoço hoje, pensou John.

Ao terminar, resolveu dar uma olhada na privada e ali não tinha nada marrom. Estavam ali seu intestino e muito sangue. John sentiu uma ânsia de ver tudo aquilo e começou a vomitar. De sua boca saiam sangue e vermes que se mexiam como se estivessem sendo eletrocutados. John desmaiou e bateu a cabeça na pia antes de encontrar o chão.

O japonês abriu a porta do banheiro e ao ver aquilo apagou a luz e trancou a porta.

John acordou e pensou "Ufa! Foi tudo um pesadelo". Levantou-se no quarto escuro e caminhou até o interruptor ao lado da porta para ligar a luz. Quando ligou, percebeu que estava em um quarto todo pintado de branco, sem janelas e com paredes manchadas de sangue. John pensou em gritar mas a voz não saia. Colocou a mão em seu pescoço e percebeu que ele estava aberto, assim como seu peito e sua barriga. Ele podia ver os vermes comendo seus orgãos. Antes de afundar no chão, que o sugava como areia movediça, pode ler uma frase escrita com merda na porta: "Esta foi a sua vida".

terça-feira, 14 de junho de 2011

A torta da vovó

Dona Neide adorava passar os dias na cozinha preparando os mais diversos tipos de pratos. Depois que seu marido morreu na Segunda Guerra Mundial, a culinária aliviava todas suas dores, saudades e mantinha sua cabeça ocupada. Tinha achado uma forma de enganar o tempo que estava consumindo seu corpo, o deixando cada dia mais frágil e debilitado.

Com seus cabelos grisalhos presos, peso um pouco acima da média e bochechas rosadas, preparava o jantar. Pegava sua faca afiada que parecia ter saido de um filme de terror, cortava o tomate em várias rodelas para fazer o molho. Pegava o pau de macarrão e o utilizava para preparar a massa. Colocava o bife no triturador e fazia a carne moída. Em alguns minutos tudo estaria pronto.

Mais um jantar sozinha. Outro rotineiro triste fim de semana.

Na sala de jantar, enquanto abria seu vinho do porto para saborear com o macarrão a bolonhesa que passou a tarde inteira fazendo, um barulho no apartamento vizinho começava a incomodar. Os Alfredo pareciam jovens de 18 anos que tinham acabado de descobrir o sexo. Passavam a noite inteira fazendo barulhos escandalosos que remetiam as noites que tinham com o seu falecido marido na juventude.

-Meu Deus, eles já tem filho grande, que indecência! Pensava Dona Neide imaginando o filho de 7 anos do casal tentando adivinhar que barulhos eram aqueles no quarto dos pais.

Depois de jantar e assistir a novela, era hora de dormir. Mal deitou na cama e os Alfredo recomeçaram seu show sexual nada particular naquelas finas paredes que os separavam de Dona Neide. Dona Neide sentou-se na cama e colocou seus óculos. Saiu de seu apartamento e bateu na porta dos Alfredo.

- Boa noite! Disse Dona Neide.
- Boa noite Dona Neide, algum problema? Responde Fábio Alfredo, usando apenas um shorts que mal disfarçava o volume ali escondido.
- Desculpe incomodar a essa hora da noite mas, o ralo da cozinha entupiu e a água do esgoto inundou tudo. Explica Dona Neide com um olhar misto de carência e tristeza.

Fábio entra para sua casa e, depois de alguns minutos, reaparece vestindo uma camiseta e com Júlia, que fazia questão de mostrar em seu rosto o incômodo que Dona Neide estava causando. Sádica, internamente, Dona Neide adorava ver aquilo.

- Por aqui, venham ver. Dizia Dona Neide abrindo a porta da casa para o casal.

Fábio chega perto do ralo na cozinha, agacha e dá uma olhada. Não vê nada de errado.

- Mas o ralo não está...

Dona Neide acerta um golpe certeiro na cabeça de Fábio com o pau de macarrão antes que ele faça suas conclusões. O sangue dele começa a pintar todo o piso anêmico do chão da cozinha. Júlia tenta correr mas Dona Neide pega uma faca que estava na pia e acerta o peito de Júlia. Júlia resiste e ainda tenta fugir mas Dona Neide acerta outra facada dilacerando sua cabeça.

- Vou ter que lavar a cozinha de novo amanhã. Diz Dona Neide furiosa olhando para todo aquele sangue.

Na manhã seguinte, o filho dos Alfredo bate na porta de Dona Neide aos prantos.
- Dona Neide! A senhora não vai acreditar! Meus pais sumiram e nem deixaram recado. O que eu faço?
- Calma, meu filho. Responde Dona Neide com um ar sereno. Se acalme. Vamos, entre e venha saborear uma torta de carne especial que passei a noite inteira fazendo.

domingo, 12 de junho de 2011

Os corações de Jaqueline


No cair da noite, Jaqueline acendia seu Marlboro e colocava os pés na rua para mais um dia de trabalho. Cabelos tingidos de loiro com mechas vermelhas, uma roupa extremamente provocante, saltos altos vermelhos como o seu batom, que deixavam seus lábios como os da Courtney Love em seus tempos áureos antes da decadência.

Sentada na esquina, enquanto lixava suas unhas com sua lixa de metal, os homens mais bizarros que poderiam ser encontrados na noite faziam graça ao passar com o carro, menosprezando seu trabalho. Por 150 reais, fazia o serviço completo, realizava os desejos mais sujos daqueles babacas. E ela ainda tinha que suportar aquilo. Eram ossos do ofício, pensava ela.

Às duas da manhã, pára um Porsche branco em sua frente. Nunca tinha visto um daqueles tão de perto. “Ganhei o dia!”, pensou ela com um sorriso oculto em seu olhar sensual e esnobe. A porta do carro se abre e um homem de terno e gravata desce. Cabelos loiros curtos, olhos verdes e uma firmeza em seus passos que faziam ela imaginar todos os desejos que se passavam em sua mente.

Foram poucas palavras e negociações para ela entrar no carro. “Meu nome é Ricardo”, se apresentou o homem fino. Foram as únicas palavras que saíram de sua boca. O silêncio não incomodava ninguém, parecia parte do cenário daquela noite escura.

Em poucos minutos chegam ao seu destino. Ricardo estaciona em frente a uma casa enorme, com um gramado verde e bem aparado. Ele abre a porta para Jaqueline e eles entram na mansão enorme. A casa era linda por dentro, parecia uma casa que Jaqueline via em suas viagens de LSD na época em que tentou fazer uma faculdade para levar uma vida decente.

O casal sobe as escadas e entra em um quarto quente com uma cama enorme. Jaqueline observa tudo ao seu redor e começa a tirar sua roupa enquanto Ricardo a observa. Pele lisa, tatuagem em um lugar estratégico, um corpo feito para o pecado carnal. Ao deitar na cama, Ricardo tira sua roupa e se junta a ela para realizar os desejos mais sujos que se passaram em sua cabeça desde os 15 anos, quando se masturbava escondido no banheiro com as revistas pornográficas de seu tio.
Quando o ato foi consumado, Jaqueline sentiu suas veias pulsarem em seu corpo. Ia acontecer de novo. Nuvens negras esconderam a lua que iluminava o quarto pela janela e uma força incontrolável tomou seu corpo. Ela ficou de pé, nua na escuridão que invadiu o quarto que ainda tinha uma forte essência que o ato sexual libera no ar.

Pegou sua bolsa e procurou sua lixa de metal escondida entre moedas, notas amassadas e camisinhas que pegava no posto de saúde para economizar.

Com a lixa na mão deu um sorriso delicadamente infernal e caminhou em direção a cama. Subiu nela e se colocou de joelhos com as penas abertas entre o quadril de Ricardo, que dormia silenciosamente satisfeito.

Levantou a lixa e a cravou no peito de Ricardo que deu um suspiro desesperado, quase que silencioso. Jaqueline cavoucava em seu peito, como se fosse uma criança fazendo um castelo de areia na praia. Procurava por algo ali. O coração. Encontrá-lo no peito de Ricardo foi melhor que o orgasmo que tinha tido alguns minutos antes. Ela o arrancou de seu peito e o colocou dentro de sua bolsa. Vestiu sua roupa sem ao menos limpar o sangue, provas do crime fixadas em seu corpo. Desceu as escadas e fugiu no Porsche branco cantando os pneus pelas ruas.

Chegou a sua casa e, ao entrar na sala, todos os seus gatos vieram a seus pés, como súditos no inferno saudando e adorando o diabo. Ela desce para o porão, abriu um vidro vazio na prateleira e colocou o coração de Ricardo dentro. Encheu o pote com um vinho tinto velho que estava jogado em um canto, fechou o pote e disse algumas palavras em uma língua estranha olhando para cima, numa espécie de ritual wicca.

Era mais um coração entre as dezenas que ali se encontravam. Sua coleção crescia a cada noite, a prateleira estava quase cheia. Jaqueline se orgulhava daquilo. Só faltava descobrir o que ia fazer com todos eles. Talvez alguma noite, aquele mistério se revelasse e ela descobrisse porque nunca sentiu seu coração bater depois da meia noite.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Acrilic on canvas

Ele sabia que hoje era o dia. Lutou contra todos os demônios que vivem em sua cabeça e, dessa vez, tinha perdido definitivamente a batalha que travava durante anos. Pensava que a água fria que corria pelo seu rosto eram gotas da chuva que entrava pela janela mas, na verdade, era o seu suor revelando instintos ainda desconhecidos por ele, instintos que se expressariam da forma mais torta e visceral naquela noite.

Pulou da cama como se fosse um dia especial em sua vida, como se fosse uma criança feliz acordando para arrumar sua mala para sua primeira excursão escolar.

Desceu a escada e entrou na cozinha sem ao menos ligar a luz. Abriu a terceira gaveta, pegou uma faca tão afiada que saiu faísca ao encostar sem querer abruptamente no canto da pia. Isso fez um barulho estridente de metal ecoar pela cozinha.

Sua cabeça estava tão vazia que os seus passos pareciam ser controlados por uma força sobrenatural, um demônio sanguinário preparado para satisfazer seus desejos mais obscuros sem nenhuma restrição.

Saiu pela porta da casa e andou pelo quintal com os pés descalços na grama. Seguiu até o final de rua. O condomínio La Plata parecia um hotel 5 estrelas de um filme de Hollywood. Era um cenário perfeito para executar sua obra prima do mal que vinha sendo encenada por noites a fio em seus pesadelos.

Em sua mente, um rosto estava estampado. Não sabia o nome da pessoa mas sabia todas as mentiras que ela espalhou pelas noites de festa regadas a drogas, distribuindo olhares e perverções através de frases tiradas de algum livro pornô barato. Ela morava no sexto andar ... por mais alguns minutos.

Entrou pelo prédio como se fosse um morador comum, simulando uma naturalidade impressionante. De cabeça baixa, fingindo estar preocupado com alguma coisa importante, entrou pelo elevador e apertou o botão 6 que acendeu uma luz vermelha cintilante, cor do sangue que pulsava em suas veias.

A porta do apartamento estava aberta. Como se fosse um velho espírito que habitava aquela casa e conhecia todos os cômodos, caminhou em direção ao quarto com a porta entreaberta: o quarto de sua vítima. Parecia uma tela em branco esperando um pintor inspirado chegar para descarregar sua criatividade.

Ela estava tão bonita sobre o lençol. Seus cabelos espalhados pela cama, com os seios a mostra - digno de um quadro sensual pintado por Van Gogh, o luar clareando seu rosto, espelhando uma falsa inocência que faria os mais sanguinários sentirem piedade ou, talvez, algum desejo mais sujo.

A chuva estava cada vez mais forte, parecia acompanhar o desejo de carnificina que crescia em sua mente.

Quando o primeiro trovão caiu, ele deu a primeira facada de forma maestral cortando o seu pesçoco e, em poucos segundos, o sangue se espalhava pela lençol criando uma assustadora pintura unicolor vermelha. A segunda facada veio como um casal apaixonado, juntamente com a terceira. O desejo de vingança se expressou tão forte em seu braço que o sangue se espalhava pelo quarto todo, alimentando a força necessária para executar as dezenas de facadas que estavam por vir.

Suado em um quarto com paredes tingidas de vermelho, lembrando um bordel de beira de estrada, ele pegou o coração que, misteriosamente, ainda pulsava dentro da caixa torácica e escreveu na parede: Lave-me, por favor.

Era apenas um simples homem como qualquer outro na vizinhança pela manhã. Agora, era um artista do mal que terá que alimentar seu demônio interno com doses cada vez maiores, feito um viciado em heroína, até chegar o dia da overdose moral diante os portões do inferno.